.png)
Ano 2 | Abril de 2025


A Revista Mundaréu, primeira Revista Digital de Turismo, Cultura e Artes da Região dos Inconfidentes, passa a operar em rede com o site da jornalista Valéria Monteiro, em São Paulo. Com essa parceria, a arte e a cultura de Minas Gerais ganham a interlocução de uma das mais renomadas profissionais do jornalismo nacional — a jornalista que fez história ao quebrar paradigmas nos telejornais da TV Globo entre 1986 e 1993. Primeira mulher no elenco de apresentadores do Jornal Nacional, Valéria foi apontada, em 1992, como a jornalista de maior credibilidade da TV brasileira pelo Instituto DataFolha.

Ora-pro-nóbis, rogai por nós (e crescei também!)
Valéria Monteiro
24 de março 2025
Me disseram que a ora-pro-nóbis era praticamente uma praga — daquelas que pegam fácil, se espalham sem cerimônia e viram cerca-viva em pouco tempo. Com essa fama, achei que a minha fosse dominar o jardim rapidinho. Mas não. Está ali, quieta, num vaso grande, semelhante ao do meu abacateiro, que, por sua vez, cresce cheio de força e vitalidade. Ela, não. Ainda tímida, parece estar escolhendo o momento certo de se revelar. Ou será que essa planta só vai pra frente quando tem uma cerca para se agarrar?
Plantei a ora-pro-nóbis em casa não só pela curiosidade, mas porque ouvi falar dos seus efeitos benéficos para o sistema de defesa do nosso corpo — e isso nunca foi tão importante quanto agora. Minha neta começou a ir à escola. E, como toda avó sabe (e sente), o primeiro ano é aquele em que o sistema imunológico ainda está aprendendo a se virar sozinho. A contaminação é constante, os resfriados se revezam entre os coleguinhas e a família inteira acaba sofrendo junto. Mas ninguém deixa de abraçar a criança, claro.
Além disso, venho buscando cada vez mais fontes de proteína que não sejam de origem animal. Por gosto mesmo. E a ora-pro-nóbis é uma das campeãs nesse quesito. Rica em proteínas, fibras, ferro, cálcio, magnésio e vitaminas, essa planta nativa da América Tropical já foi chamada de “carne dos pobres” — e não é à toa. Estudos da Universidade Federal de Viçosa comprovaram seu valor nutricional e seu potencial para fortalecer a imunidade.
Ora-pro-nóbis
O amigo Victor Stutz, da revista Mundaréu, conta com poesia uma lenda mineira que pode explicar a origem do nome: dizem que padres da Serra do Caraça usavam a planta como cerca-viva e proibiam os fiéis de colher suas folhas. Mas o povo, esperto, aproveitava os momentos de missa para pegar algumas escondido. Daí, talvez, o nome Ora pro nobis — “rogai por nós”, em latim.
Hoje, a ora-pro-nóbis vai muito além do improviso: está nos cardápios de restaurantes sofisticados em cidades como Ouro Preto, Mariana e Tiradentes. É estrela em pratos com linguiça, costelinha, marreco, carne moída… Em Sabará, MG, ela ganhou até um festival gastronômico que celebra seu valor cultural e alimentar.
Enquanto minha plantinha decide se cresce ou apenas me observa, sigo cuidando dela com carinho. Talvez ela só precise de tempo. E, como tudo que é bom, virá quando estiver pronta. Quando florescer, já sei: vai ter panela esperando por ela.
Você sabia que…
A ora-pro-nóbis (Pereskia aculeata) também é conhecida por outros nomes populares, como orabrobó, lobrobó e lobrobô?
Apesar de ser uma cactácea, possui folhas verdes, carnudas e comestíveis — algo raro entre os cactos. É uma planta rústica, resistente, e uma excelente alternativa alimentar para quem busca saúde, sabor e menos dependência da proteína animal.

Foto de Deiwison Xavier (Ouro Preto, MG)

O Sotaque que Transita Entre Fronteiras.
Por Valéria Monteiro para Revista Mundaréu
23 de Março de 2025
Embora Campinas fique bem pertinho de Minas, o estado é grande, e a fronteira sul já carrega uma cadência mineira forte — mas com um “R” final que se aproxima mais do que se ouve no interior paulista. Em Belo Horizonte, o “R” é gutural, arranhado lá no fundo da garganta, como um eco francês ou alemão. Já nas falas campineiras, o “R” é retroflexo, o famoso “R caipira”, vibrante e com a língua enrolada, tão típico que parece quase uma assinatura cultural.
Nasci em BH, mas nunca morei de fato em Minas. Apesar dos dois meses de férias que passava lá todos os anos, não sei se daria para dizer que cheguei a morar. Ainda assim, as raízes estavam firmes: meus pais nasceram e cresceram em Minas, e a maior parte da nossa família continua por lá. Eles tinham um orgulho imenso do seu sotaque “belorizontino”, que não por acaso foi eleito recentemente o mais charmoso do país. Esse orgulho se refletia em mim — eles faziam questão de que eu falasse como eles, mesmo quando comecei a estudar em Campinas e os sons ao meu redor queriam me puxar para outros ritmos.
A infância não é exatamente gentil com as diferenças. O que hoje chamamos de bullying, naquela época era um teste de sobrevivência — e para mim, isso incluiu aprender a sustentar a maneira como eu falava. As piadas, imitações e olhares enviesados me ensinaram, sim, a ter casca grossa. Mas foi o respeito e o amor dos meus pais pelo jeito mineiro de falar que realmente moldaram minha resistência. Entre a vergonha e o pertencimento, fiquei com o segundo.
Cresci achando bonito o sotaque carioca do meu avô. Tentava imitar o chiado, o gingado das palavras, e até buscava justificativas para adotar aquele som. Morei quase uma década no Rio e desenvolvi um senso profundo de pertencimento à cidade — mas o sotaque, mesmo com todo convívio, nunca me pegou. Nunca foi um esforço para evitar, simplesmente não aconteceu. Meu sotaque ficou misturado, mais sutil, com nuances adquiridas aqui e ali, mas ainda reconhecivelmente parecido com o dos meus pais.
Minha filha, nascida em Campinas, viveu parte da infância no Rio e passou uma década em, onde foi alfabetizada. Quando voltamos a Campinas, ela carregava um sotaque americano que era, ao mesmo tempo, adorável e cômico. Lembro do nosso espanto e das gargalhadas com o nome de um novo colega de escola: Arthur — não pela dificuldade de pronunciar com o sotaque americano, mas porque o jeito abrasileirado, com o “R” gutural que ela tinha aprendido de mim, soava confuso demais para os próprios ouvidos. O “TH” em inglês, pronunciado com a língua entre os dentes, foi um dos maiores desafios. Para nós, brasileiros, era difícil de aprender, mas para ela, o que parecia engraçado era justamente a confusão de entender o que os outros diziam, sem saber exatamente como pronunciar.
Com o tempo, foi surgindo nela um sotaque híbrido, só dela, mas parecido com o meu — um “R” mineiro, gutural, salpicado de gírias campineiras. Como se, no fim, a voz da casa tivesse mesmo um campo gravitacional próprio.
Sotaques são muito mais que jeito de falar — são identidade, são memória. Carregam histórias, valores, afeto. E também provocam reações. Em uma aula brilhante sobre moralidades cotidianas, o professor Paul Bloom, da Universidade Yale, apresentou um estudo marcante: enquanto bebês não demonstravam qualquer rejeição baseada na cor da pele, reações de estranhamento e até recusa surgiam ao ouvirem diferentes sotaques. O que parecia “familiar” ou “diferente” estava, antes de tudo, na voz. No som.
Lembro de ouvir meu pai dizer que, na época das telefonistas, ligava para a Bahia só para escutar o sotaque das atendentes. Aquilo me causava um desconforto difícil de nomear. Talvez fosse ciúme cultural. Ou só a estranheza de ver alguém se encantar por uma voz que não era a da própria casa. Me parecia uma espécie de traição — como se, mesmo sem intenção, ele flertasse com um jeito de falar que não era o nosso. Como se a beleza de outro sotaque ameaçasse o pertencimento que ele mesmo tanto valorizava.
A convivência com diferentes sotaques é uma das maiores riquezas de viver em um país como o nosso. Ela nos desafia a escutar melhor, a compreender o outro com mais generosidade. Mais ainda: essa diversidade sonora estimula a cognição, amplia vocabulários, revela modos únicos de pensar o mundo. É como se cada sotaque fosse uma lente nova para ver a realidade.
Se cada língua carrega uma cultura inteira, cada sotaque revela o território emocional de um povo. O meu — que começou mineiro, passou por Campinas, viveu o Rio, ecoou Nova York pelos ouvidos da minha filha e continua em trânsito — é um mosaico afetivo. E que bom que seja assim: híbrido, enraizado e ainda em transformação.
>>> Conheça e siga o novo Caderno Turismo&Viagem do site da autora


As mulheres (in)visíveis da Inconfidência Mineira
Valéria Monteiro para Revista Mundaréu
11 de Março de 2025
Março chegou, e com ele o mês das Mulheres. Aproveitando também a nova parceria do site com a revista Mundaréu, achei mais do que justo dedicar este espaço a contar um pouco sobre as mulheres que estiveram envolvidas — direta ou indiretamente — na Inconfidência Mineira. Essas histórias raramente ganham destaque, mas merecem (e muito!) ser lembradas.
Quando a gente pensa na Inconfidência, logo vem à mente Tiradentes: a barba, a forca, o discurso pela liberdade. Mas e as mulheres? Onde estavam? O que viveram, o que sentiram, enquanto seus companheiros, filhos, pais ou irmãos conspiravam contra o domínio português?
A verdade é que a história sempre deu mais palco pros homens. As mulheres, como em tantos outros momentos, foram jogadas para os bastidores. Mesmo assim, estavam lá. Resistindo, amando, sofrendo e, muitas vezes, agindo com uma coragem que ninguém ensinou nos livros da escola.
Sebastiana e as outras
Quase ninguém fala da Sebastiana, amante de Tiradentes e mãe de sua filha. Não está nos livros didáticos, mas existiu. Imagina viver à sombra de um homem que virou herói ou traidor, dependendo de quem conta a história. Como foi pra ela criar uma filha com esse peso? Enfrentar o julgamento silencioso (ou nem tanto) das pessoas ao redor? Essas perguntas ficam no ar, mas o silêncio também fala.
Ou então a Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, mulher forte que apoiou financeiramente a Inconfidência. Ela não estava ali só como expectadora — se envolveu de verdade. Como tantas outras, desafiou o que se esperava de uma mulher da época e pagou o preço.
Porque sim, as mulheres da Inconfidência também foram punidas. Só que de formas menos visíveis. Suas dores foram ignoradas, seus nomes esquecidos, seus atos de coragem varridos pra debaixo do tapete da história. Enquanto os homens tiveram seus nomes gravados em praças, avenidas e monumentos, elas ficaram no esquecimento — e isso também é um tipo de castigo.
E mesmo hoje, pra sermos reconhecidas, parece que ainda temos que ser Joanas d’Arc — sofrer, resistir, provar mil vezes nosso valor. E quando enfim nos aplaudem, é como se fosse um prêmio por termos sobrevivido ao fogo. Mas essa conversa fica pra um próximo post.
Por enquanto, que fique claro: as mulheres estavam lá. E seguem aqui.
Se você também acredita que a leitura pode abrir caminhos e nos ajudar a enxergar melhor o mundo (e a nós mesmas), deixo aqui uma dica valiosa: o livro Independência do Brasil – As mulheres que estavam lá, organizado por Heloísa Starling e Antônia Pellegrino, publicado pela editora Bazar do Tempo. São histórias de figuras como Bárbara de Alencar, Maria Felipa de Oliveira, Maria Quitéria, Dona Leopoldina, entre outras. Mulheres incríveis, corajosas, inspiradoras.
A gente precisa aprender a se ver na história. A reconhecer as que vieram antes, a entender nosso papel agora, e a deixar espaço pra quem ainda vai chegar. Só assim vamos mudar, de verdade, o reconhecimento das mulheres que foram, que são e que serão — nossas heroínas.
>>> Leia também, no site da Valéria: Oito de Março: Celebração, Reflexão e Ação

A Diáspora Mineira: Entre a Saudade e a Reinvenção
Valéria Monteiro para Revista Mundaréu
06 de Março de 2025
Minas Gerais sempre foi um estado de partida. Desde os tempos do ciclo do ouro, quando aventureiros seguiam para outras terras em busca de novas riquezas, até os dias de hoje, em que os mineiros saem de suas cidades em busca de oportunidades, seja no Brasil ou no mundo. A diáspora mineira não é um fenômeno recente, mas continua a moldar identidades e a criar laços entre Minas e os muitos destinos de seus filhos espalhados pelo globo.
Minha família faz parte dessa história. Eu moro em Campinas, no interior de São Paulo, e já ouvi dizer que é a quarta cidade do Brasil com maior número de mineiros entre seus habitantes. E faz sentido, Campinas fica bem próxima da fronteira Sul de Minas.
Quem já conviveu com mineiros fora de Minas sabe que eles nunca deixam para trás sua terra completamente. Leva-se o sotaque, as expressões típicas, o gosto pelo queijo e pelo café coado, a habilidade de contar causos e, acima de tudo, o jeitinho desconfiado que logo se transforma em amizade sincera. Minas é, antes de tudo, um estado de espírito, e isso viaja junto com cada um que parte.
A motivação para sair varia. Jovens buscam universidades e novos desafios, profissionais se deslocam para centros econômicos mais dinâmicos, artistas encontram espaço em grandes cidades culturais. Mas o que muitos não percebem é que, ao partirem em busca de oportunidades, levam consigo outras tantas que já possuíam: a força do trabalho, a criatividade, a hospitalidade e um olhar único para o mundo. Minas não é um lugar de onde se foge, mas um celeiro de talentos que se expandem para além de suas montanhas, enriquecendo os lugares por onde passam.
Não por acaso, cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília têm comunidades mineiras fortes e ativas. No exterior, mineiros se destacam nos mais diversos campos, levando a hospitalidade e a competência que são marcas registradas. Minas aprende com a vivência da diáspora, absorvendo novas influências, e, ao mesmo tempo, os lugares que recebem os mineiros se beneficiam da rica cultura da terra, facilmente reconhecida pelos filhos das montanhas e que conquista simpatia e admiração de quem não é mineiro. Seja na culinária, na música ou na moda, há sempre um toque especial que faz com que algo vindo de Minas seja único. No vestir, por exemplo, há um charme recatado, uma ousadia singela que equilibra tradição e modernidade. O bordado delicado, o corte impecável das peças, a valorização do feito à mão e a atenção aos detalhes fazem da moda mineira uma referência nacional e internacional, assim como tantas outras manifestações culturais do estado.
Mas Minas nunca deixa de ser lar. Quem vai, sempre volta, nem que seja em memória, nos sabores e nas músicas que trazem um pedaço das montanhas para onde quer que estejam. E talvez seja isso que faz da diáspora mineira tão especial: ela não é um abandono, mas uma expansão. Minas se espalha pelo mundo sem jamais se perder de si mesma.
E hoje, celebramos um novo capítulo dessa história. A parceria entre meu site e a revista Mundaréu surge como uma ponte entre os mineiros que partiram e aqueles que, de alguma forma, foram contagiados pela diáspora. Uma aliança que abre espaço para a cultura, a memória e a identidade mineira serem compartilhadas e ressignificadas, reunindo aqueles que encontram em Minas, mesmo à distância, um ponto de conexão. E, com esta nova relação, faço o caminho contrário e me aproximo dessas raízes que sempre me orgulharam tanto. Quem sabe, por meio dessa troca, possamos continuar espalhando as montanhas pelo mundo, sem jamais deixarmos de ser Minas.